sexta-feira, 12 de setembro de 2014

o segredo do vento


a primeira carta que Anita recebeu tinha tantas  rugas  e dobrada em tantas partes, que parecia um origami. Abriu-a com a ponta dos dedos finos, com o cuidado de uma médica de cartas machucadas. A cada vez que a desdobrava, tinha a impressão que desmanchava um pássaro de papel. Quase desistiu, mas a curiosidade a cutucava, cochichava nos seus ouvidos : abre, abre...
As palavras eram tão pequenas , cortadas pela linha da dobradura, que era quase impossível lê-las, mas Anita não tinha pressa de desvendar aquele segredo. Lia cada uma com a atenção que elas mereciam, depois de tanto tempo dobradas daquele jeito, porque pela data já fazia um bom tempo que aquela carta havia sido escrita.
Leu seu nome escrito com todo o cuidado, a linha fininha desenhando as letras de forma toda redonda. Parecia letra de menina, daquelas que desenham flores nas beiradas do caderno. Mas aos poucos as palavras lidas diziam que não era bem isso...aquela carta, trazida pelo vento e toda machucada por tantas dobraduras , era uma carta de amor!
Sentiu pena da pobre carta, que parecia ter viajado muito até achar sua janela aberta e ir entrando, trazida pelo vento. Não tinha nome, mas  uma poesia com palavras rimadas, que era inteirinho para ela, Anita.
                                                                     Anita bailarina
suave como o vento
tento disfarçar meu jeito
mas quando te vejo
fico em total desespero
 que saio correndo
porque meu coração 
é todo seu...

O vento fez bem o seu trabalho, trouxe a carta para Anita, e de segredo entendia, porque o nome do poeta, ele não ia falar...






sábado, 31 de maio de 2014

o lago que mora no céu



Naquele céu todo pintado de azul, imensamente azul, um lago morando lá em cima, bem grande que chama a gente para mergulhar os pés e sentir como é fresca a água. Mas ele mora lá no céu, sem uma pinta, uma nuvem, um risco.E tão, tão grande. O sol nada sozinho nesse lago, não derrete porque é rei, e os reis não derretem nunca. Além de desenhar sombras muito bem , ele é ótimo nadador de lagos no céu! Mamãe não acredita em nada do que falo, mas é tudo verdade Banzé! nénão? Ó, porque o rei Sol vive assim tão sozinho nesse lagão? É porque ele acha que os reis devem viver sozinhos, e isso é coisa da cabeça quente dele, porque bom mesmo é viver com todo mundo, né? Banzé, você é um cachorro muito magrela e bobo, eu aqui falando minhas coisas sérias e você só dorme! Vamos dançar?

E Severina sai correndo de pés descalços, levantando a poeira vermelha , rindo sua risada alegre. Dança com  Banzé as músicas que inventa. Os dois são amigos inseparáveis. Desde que aprendeu com a mãe a olhar o céu , ela inventou um sonho: o de encontrar uma nuvem colorida e  dá-la de presente para a mãe. E nunca, nunca mais ela ia precisar ficar olhando esse "lago que mora no céu" a procura de chuva.

Já está cansado Banzé? Sabe...quando a chuva colorida chegar, você vai ter que aprender a nadar, sabia? e você vai ficar colorido e molhado, porque você nunca tomou banho, né? É porque você nunca viu muita água, aí só toma banho de poeira...e fica assim, vermelhinho! Eu nem sei que cor você é de verdade...

Banzé abana a cauda e se deita aos pés de Severina, cansou de tanta dança e brincadeira. E a palavra banho sempre lhe dá um medo danado!
Amanhã será outro dia de brincadeiras com a amiga. E talvez, quem sabe eles não tenham uma surpresa? Quem sabe?





( pintura : Vincent Van Gogh )












quarta-feira, 23 de abril de 2014

o desaparecimento da senhora Heliodora


A senhora Heliodora penteou o cabelo, que era bem branquinho, colocou os óculos de aros vermelhos, escolheu um vestido xadrez , pegou sua bolsa Luis Voatoa , deu uma olhadinha no espelho e saiu . Cumprimentou dona Maria Julieta, que estava aguando as flores no jardim, sorriu para o neto da dona Eduardina, brincou com o cachorro do seu Felipo e disse algumas coisinhas pra ele. Dobrou a esquina, passou na quitanda do seu Frederico,onde comprou quatro maçãs, uma pera, uma cabeça de alface e dois dentes de alho. Saiu dando adeusinho e dizendo que o dia estava lindo. Entrou no ônibus Jardim Azul 488 e...nunca mais foi vista. Sua casa está apagada desde o dia em que saiu e não voltou mais. A grama secou, as flores morreram. Os passarinhos foram embora, as gaiolas estavam com as portinholas abertas.
Dona Maria Julieta tem certeza que ela usava um vestido xadrez, mas o seu Felipo já acha que era listrado de amarelo e que ela combinava muito com aquela estampa. Não lembra o que conversaram, porque sua memória anda apagando coisas. Mas gostavam de conversar  sobre receitas que passam na televisão. Eram fãs da Anamaria Praga, não perdiam um programa dela. Bem, mas naquela manhã, perderam. Ela saiu mais cedo e ele, preferiu sair com o Doguito, seu cachorro.
Dona Eduardina , avó do pequeno Alonso, disse que ela estava muito elegante aquela manhã, de casaco e tudo, não viu que estampa era o vestido.Mas tem certeza que ela usava um casaco. Embora estivesse um dia lindo de céu claro. Naquele dia, não conversaram porque ela parecia estar com pressa, mas parou um pouquinho para conversar com Alonso, que gostava dela porque sempre ganhava balas. Viu que ela dobrou a esquina e foi embora.
Foi seu Frederico, dono da quitanda, que a viu entrando no ônibus Jardim Azul 488, reparou nisso porque a acompanhou até a calçada e a viu correndo com seus passinhos miúdos e fazendo sinal com os braços fininhos para que o ônibus parasse. Foi ele o primeiro a falar da bolsa Luis Voatoa, porque é bem reparador de detalhes. Sobre a compra, lembra de cada item, porque  anotou num bloquinho, dona Heliodora ia pagá-lo depois, como sempre fazia.Sim, ela estava de casaco, embora estivesse aquele calorão.
Para onde foi a senhora Heliodora ? Por que sumiu e nunca mais deu notícias ?
No ônibus ninguém a viu, nem com casaco, nem bolsa Luis Voatoa, nem com cabeça de alface... As pessoas não costumam olhar para o lado, a reparar nos outros, a ver se tem alguém triste ou perdido por perto. Depois que ela entrou nesse ônibus, ela se tornou apenas mais uma pessoa. Mais uma pessoa indo para algum lugar.E que não voltou mais.
A senhora Heliodora virou um mistério.

quarta-feira, 9 de abril de 2014

como escrever uma carta de amor




_Existe toda uma técnica em escrever cartas românticas Beto, eu sou um especialista em escrever cartas irresistíveis, a sua avó foi conquistada com apenas uma ! E eu sei, que até hoje ela guarda essa carta no nosso álbum de casamento. Eu sou o melhor, he he !
Beto não queria ter nenhuma técnica para escrever cartas e não sabia de onde o avô tinha tirado a ideia de que ela seria romântica... Ele queria escrever uma carta para Anita, mas Só porque ele andava muito mais distraído que sempre, esquecido dos afazeres e recados, tropeçando em esquinas e escadas, não queria dizer que ele estava apaixonado, apenas atrapalhado, oras, quem nunca passou por momentos de "atrapalhamentos"? Beto, além de ficar com a cabeça nas nuvens, também adorava rimar e inventar palavras - atrapalhamento- era uma delas.
 E esquecimento era outra que vivia atrapalhando os planos do vovô Petrônio, é ele tinha esse nome estranho, mas inesquecível, que para disfarçar que estava procurando o bloco de papel e caneta, fez Beto despertar dos sonhos.
_Beto, adivinha onde o vovô colocou o bloco de papel!
Beto não precisava adivinhar, sabia onde os papéis moravam, na gaveta da escrivaninha, como sempre.
_Primeiro, você precisa pensar no que quer escrever, nos substantivos mais apropriados, nos adjetivos mais encantadores, aqueles que exaltam o coração, que fazem ele suspirar resplandecido de emoção, e que o amor fique enaltecido, entorpecido , enriquecido!
Beto adorava as palavras, mas aquelas que vovô Petrônio falava, estavam muito complicadas e pensou que se escrevesse do jeito que ele ensinava, Anita não entenderia nada, ou pior, desistiria de ler a carta, até dormiria, talvez achasse que era um problema de matemática!
Deixando as palavras do vovô Petrônio voarem pela janela, Beto pegou apenas algumas, escreveu -as no papel fininho, tentou caprichar na letra. Dobrou o papel. E vovô Petrônio lá falando, falando,falando que nem reparou que Beto já escrevia sua carta - que NÃO era romântica, oras... e guardou-a no bolso da calça.
_E então, ela ficará paralisada de tanta emoção!
Beto não queria ver Anita paralisada, queria ver pelo menos um sorriso! Talvez foi assim, com a vovó Filomena paralisada ,que o vovô Petrônio a pediu em casamento.
Com  a carta guardada  deixou vovô Petrônio com suas infinitas palavras complicadas voando com o vento. Um dia, quando tivesse coragem, ele ia entregar a carta para Anita. Mas isso...nem ele sabia quando seria...





terça-feira, 18 de março de 2014

o ladrão de beijos



Debaixo da sombra da árvore , as folhas caídas, e acima delas, os pés flutuantes de Anita. E entre Anita e o mundo existia o silêncio guardado. E para ouvir o barulho de alguma coisa, Anita pisou nas folhas secas, a brisa virou vento levando algumas folhas para longe e então Anita teve coragem de olhar para o lado. O coração parecia mais calmo agora, mas ainda estava assustado. Ou feliz? Sentado ao seu lado Beto olhava as folhas que dançavam com o vento. Será que ele também estava feliz? Ou assustado com o beijo que ele roubou? Será que agora ele era um ladrão de beijos? Essa ideia fez um sorriso nascer.
_Do que você está rindo Beto? de mim?
A voz de Anita , lembrou-se agora, era linda! era tão delicada, tão dela e agora tão sua...Mas Beto estava morrendo de vergonha, seu rosto queimava, ser um ladrão de beijos era algo muito recente...e estava na dúvida se ia cometer esse crime outras vezes...
_Não Anita, nunca vou rir de você...estava rindo de outras coisas. Ideias malucas que me enchem a cabeça, muitas coisas.
O vento bagunçava os cabelos de Anita, desfazia sua trança ruiva ,soltava os fios que dançavam diante do seu rosto sardento.
Agora era ela quem ria.
_E por que você está rindo Anita? De mim?
_Sim, é de você, seu bobo! Por tantas coisas que se passam por essa sua cabeça avoada, nunca reparou em mim. Levou tanto tempo para me roubar esse beijo! Para ser um bom ladrão de beijos, precisa estar acordado!

E antes que Beto sentisse a primeira gota de chuva, Anita saiu correndo , o cabelo todo livre.


( ilustração : Rebecca Dautramer )





segunda-feira, 3 de março de 2014

a memória do vovô




Eu não sei para onde vai a memória do vovô. De vez em quando ela sai para passear e deixa ele sozinho no meio de uma história que está contando. Ele fecha os olhos, aperta os dedos e tenta espremer as ideias de dentro da cabeça, e depois de muita procura e de nada achar ele diz: a memória me fugiu, não me lembro...E então a história fica com um buraco e aí ele começa outra história que vai ter outro buraco no meio.
Também esquece onde guarda os óculos, os livros, as chaves. E para isso teve uma ideia que ele achou ótima : não guarda mais nada, deixa tudo esparramado: na mesa, na cadeira que fica na varanda e até na piscina encontramos seu óculos boiando.
A memória do vovô também  adora sumir quando ele vai cumprimentar alguém e como o nome não vem, ele manda aquele que ele acha mais bonito, aí a pessoa olha meio estranho, o vovô finge que não percebeu nada, estende a mão, dá um abraço e vai embora todo sorridente.
Quando vai fazer as compras da vovó é ainda pior, teimoso como é não quer anotar as coisas que tem que comprar , tem certeza que a memória precisa ser exercitada, mas preguiçosa do jeito que ela anda, nunca dá certo e quando ele volta do mercado cheio de frutas e doces e nada de arroz e feijão, vovó não acredita mais em memória fraca e fica bem brava com ele. Mas ele nem liga e fala que ela não sabe ver as coisas engraçadas da vida.
Meu avô é uma delícia! Ele esquece muitas coisas, mas nunca esquece de ser educado, de ser divertido e de ser feliz. Isso ele diz que não vai esquecer nunca. Espero que não.

ilustração Juan Faria :http://biblioabrazo.wordpress.com/2011/06/16/un-cesto-lleno-de-palabras-juan-farias/