domingo, 1 de outubro de 2017

a saudade da princesa Aurora

Todos acordaram assustados naquela noite. Os empregados, o rei e a ama que repousavam o  corpo cansado dos dias corridos se assustaram com aquela melodia que invadia o castelo. A voz doce escorria  pelas frestas das portas, pelas brechas das janelas,descia as escadas, entrava nos quartos . Há quanto tempo Aurora não cantava?
O rei, ouvindo a voz da filha, não percebeu que uma lágrima escorria pelo rosto. Desde que a mãe partiu, Aurora nunca mais falou, sua voz nunca mais cantou. O rei que criava a filha com todo  o amor que tinha no peito, não sabia mais o que fazer para que a voz de Aurora voltasse. O médico disse que o nome daquilo era saudade da mãe, e que só o tempo curaria a doença de Aurora. Muitos dias se passaram até ficar na memória do pai apenas um fiapo da voz da filha.
Naquela noite, a saudade de Aurora de tão intensa, se transformou em melodia. 
O rei finalmente sentiu o coração leve de novo, nunca mais esqueceria a voz da filha.


sábado, 4 de fevereiro de 2017

Omar

Omar veio correndo com todas as saudades dentro do peito. Veio correndo sentindo os pés pequenos deslizando na areia quente ,a pressa era tanta que Omar nem sentia os beliscões que as conchinhas provocavam na sola do pé, aquilo eram cócegas que ele adorava. Abriu os braços para receber o vento que entrava por baixo da roupa e bagunçava  seus cabelos. Que delícia!  Um dia o pai disse que o nome dessa sensação gostosa é liberdade. Ele achou o nome lindo, então quer dizer que a liberdade mora na praia pai? é Omar, a liberdade mora na praia, o pai respondeu rindo.
Omar ficou apenas cinco dias longe do mar, dias contados um por um. Não gostou de ir no tal shopping, não gostou das ruas cheias de carros barulhentos, mas adorou a escada rolante! Aquilo era muito divertido! Mas nada comparado ás brincadeiras com o amigo.
Omar parou diante do mar e respirou fundo, ele era tão lindo: o mar...Entrou pelado na água, porque peixe não usa roupa, né pai?


sábado, 2 de abril de 2016

debaixo das estrelas

Jerônimo chegou junto com a noite, e ficou ali, paralisado diante de seus poucos móveis. Deixou a sacola com os chás caírem, pensou que era o fim do mundo, o que teria acontecido? Por que estava tudo em desordem do lado de fora da casa?
Rainha Margô Maluca não o viu chegando, estava dormindo no sofá, roncando tão alto, que era quase impossível acreditar que uma rainha tão elegante como ela, roncava! Mas algo foi subindo pela garganta de Jerônimo, subindo, subindo até virar grito, e esse grito era muito mais alto que o ronco da Rainha Margô Maluca, muito mais alto! Ela acordou de um salto, os cabelos ficaram arrepiados, o coração quase saltou pela boca, pensou que fosse algum monstro da floresta (se bem que Jerônimo estava tão irritado, que parecia mesmo um monstro...).
_ O que foi que aconteceu aqui?? Jerônimo tentava respirar, mas se tremia todo.
_Ora, ora meu querido! resolvi fazer uma faxina, e coloquei os móveis aqui fora, mas sabe, me deu uma canseira, não estou acostumada a fazer isso lá no meu castelo, mas hoje achei que seria uma boa ideia, e que você ia gostar de ter uma casa limpa, não é? E pelo jeito faz séculos que essa casa não sabe o que é isso!
_Você é uma intrometida, que chegou feito um cometa na minha casa, e muda tudo de lugar! E agora? vamos dormir aqui fora?
_ Não é uma má ideia! Cadê os chás que pedi pra você comprar hein? Vamos tomar chá debaixo das estrelas e comer bolachas! Achei umas no armário, podemos conversar, ou não...Bem, poderíamos guardar as coisas lá dentro, mas estou cansada, fazer meia faxina é cansativo...Acho muito mais divertido ficar aqui fora e a noite tá tão linda! Você viu? Ah não...você é muito rabugento pra isso né?
Deu uma risadinha, e isso deixou Jerônimo ainda mais irritado. Rainha Margô Maluca fez os chás e serviu as bolachas. Jerônimo continuava calado.Pela primeira vez,  na sua longa vida, ele estava tomando chá debaixo das estrelas e ele não ia confessar isso nunca, mas no fundo, no fundo, ele bem que estava gostando...







quinta-feira, 4 de junho de 2015

lembra logo, senhora Heliodora!

Já fazia algum tempo que a senhora Heliodora estava ali naquele banco. Os pés cansados depois da longa caminhada, os cabelos despenteados, as mãos pousadas no colo. As crianças corriam na praça sem prestarem atenção àquela senhora com ares de sonho. Senhora Heliodora estava elegantemente vestida com seu casaco , apesar do dia quente que fazia, e sua sempre companheira bolsa LuisVoatoa. Era uma senhora muito elegante. O que lhe faltava era memória. Sentada ali, vendo as crianças brincando, reparou numa linda menina ruiva que olhava para o alto da árvore e parecia conversar com ela! Não estranharia se isso fosse verdade, porque sempre conversava com suas flores e amava as árvores. Mas não entendia porque a linda menina ruiva não conversava com a árvore em voz mais baixa, mas aos berros, com sua vozinha de pássaro desafinado. A árvore deixava as folhas caírem feito lágrimas. E eram muitas lágrimas. Senhora Heliodora assistia a cena e tentava ouvir a resposta da árvore. Mas além da memória já fraca, também não conseguia ouvir todos os sons do mundo...
Anita tentava convencer Beto a sair dali, das alturas daqueles galhos gigantes. Mas sua voz parecia não alcançar o menino, que andava de um lado a outro, com grande equilíbrio, sem medo da altura, sem medo de nada(bem, isso é uma pequena mentira).
Senhora Heliodora, curiosa feito um gato, se aproximou de Anita, tentou ouvir a conversa. Mas o que fez foi dar um grande susto na menina, que deu um berro. Enfim, a voz de Anita alcançou Beto, que errando o passo, se desequilibrou. Agora estava ali, pendurado naquela altura, o corpo balançando pra lá e para cá. Ótimo, Anita ia rir dele até os últimos dias de vida dele...Que vergonha!
Mas Anita estava apavorada!
Senhora Heliodora enfim lembrou de ter visto alguma coisa parecida com isso num circo...Ela já tinha ido num circo? ai...ela não se lembrava! Bem, mas isso não era importante...
Debaixo do equilibrista sempre tem uma grande rede, para eles não caírem no chão. Uma grande ideia essa!
A ideia ela tinha, só faltava agora a rede...Onde mesmo que ela viu alguma coisa parecida?
Enquanto senhora Heliodora ( porque ela era muito elegante para ser chamada de dona...é o que ela sempre dizia), tentava lembrar, Beto tentava se equilibrar e Anita, coitada, tentando não desmaiar.

E as mãos de Beto só escorregando...

sábado, 23 de maio de 2015

o barulho do coração



Já fazia algum tempo que Beto estava ali, no alto da árvore, os pés suspensos no ar, soltos e invisíveis para quem estava ali embaixo. Ninguém tinha a curiosidade de olhar para cima, nem para as nuvens ou para a despedida do sol nas tardes de chuva. As pessoas andavam sempre apressadas andando com a cabeça baixa, ou distraídas demais para repararem que acima delas tinha um menino se escondendo de sua própria timidez. Não desconfiavam de nada, não tinham tempo para isso...
Beto tentava adivinhar os pensamentos de Anita quando lesse a sua carta, seu poema escrito numa noite de lua cheia. O que Anita ia pensar, será que ela tinha gostado? E como ela saberia que foi ele que escreveu aquela carta? Não teve coragem de assinar, aí, essa timidez que atrapalhava tanto a sua vida de enamorado...
Ficou ali, vendo as pessoas andando de um lado para o outro, os amigos perguntando por ele, os cachorros latindo, os velhos jogando dominó e...no meio disso tudo, Anita! De repente o silêncio veio e não se ouviu nenhuma voz, nem o latido dos cachorros, nem os gritos dos moleques. Só o coração de Beto batia, e esse era um barulho só , imenso, que o mundo inteiro estava ouvindo.
Anita estava no centro daquele mundo, e tudo de repente estava suspenso no ar, e então ela olhou para cima. E pela primeira vez Beto sentiu medo de altura.
Não foi o vento que contou o segredo de Beto. Anita sempre soube a resposta.






domingo, 5 de abril de 2015

A Cidade Escura


Existe uma cidade que é totalmente escura, que dorme numa noite infinita sem lua e sem estrelas. Uma cidade que de tão pequena não tem nem nome, e que ficou conhecida apenas como A Cidade Escura. A única coisa branca que existe na Cidade Escura são as nuvens transparentes de neblina, que descem a horas certas nos telhados das casas, nos sinos das igrejas, nos campos de flores e nos cabelos das moças solteiras. Quando a nuvem branca chega, todos já sabem que são horas de dormir, porque o dia seguinte será outro sem luz, sem cores.
São  infinitas noites sem lua, onde todos tem a mesma hora de dormir e acordar, Adivinham a hora de despertar pelo vento frio que entra pelas frestas das janelas, sussurrando "levanta,levanta", fazendo cócegas com seus sopros gelados, provocando até os mais preguiçosos a sair da cama quentinha.
As folhas entram pelas janelas , pousam na mesa, entram nas xícaras de café. É outro dia que começa.
As pessoas que vivem na Cidade Escura não são tristes por não conhecerem o sol e seus desenhos de sombras. Desde sempre se acostumaram com as sombras da noite, porque elas mesmas se transformaram em sombras. Se conhecem pelas vozes, pelos sons dos passos, pelas risadas. Não se preocupam muito com a combinação de cores ou se a vestimenta é bonita ou feia, na escuridão, são todos iguais. As moças gostam de sair com seus cabelos soltos ou de deixá-los serem despenteados pelas brincadeiras do vento. Se apaixonam pela voz do amado. Eles, por sua vez, gostam da maciez das mãos das amadas.
As crianças brincam de correr atrás de sombras ou de encontrá-las em esconderijos secretos.
Mas um dia, um cometa rasgou o céu. Um risco inteiro e dourado a cortar o céu escuro.Todos os olhos colados naquele imenso risco desenhado por um cometa.
E pela primeira vez viram outras cores,viram como são feitos os sorrisos, de como são feitas as lágrimas.

O cometa foi embora e trouxe a escuridão de volta. Mas nada seria como antes. Nunca mais.






segunda-feira, 30 de março de 2015

a faxina da Rainha Margô Maluca



Dentro daquela pequena casa perdida no meio da floresta, saía cortinas de poeira.As janelas que há tempos não eram abertas, agora deixavam a poeira ganhar o céu. Lá dentro da pequena casa, era barulho só, coisas atiradas para todos os lados, e gente cantando. Gente cantando? Sim, cantando!
Rainha Margô Maluca experimentava fazer faxina pela primeira vez na sua vida, e estava achando muito divertido. Ora! Era muito simples: precisava apenas colocar as duas cadeiras ( é, naquela casa só tinha duas cadeiras, e uma era manca ) em cima da pequena mesa, afastar o sofá rasgado pra fora, e abrir os armários e tirar de lá as poucas louças que tinha lá dentro. Tudo, claro, sem deixar a elegância de rainha de lado. Bem, só precisava saber se o ranzinza do Jerônimo ia gostar.Mas isso seria deixado para depois, porque  tanto fez que  conseguiu convencer o velho sair  para comprar chá. E como ela não conseguia ficar sem fazer nada, a não ser espirrar ( ó era tanto pó que a coitada não conseguia ficar um minuto sem espirrar!) que, bem, não custaria nada dar uma varridinha, mas daí, ela foi se empolgando, empolgando, e agora, estava tudo assim: empoeirado e de pernas para o ar!
Se Jerônimo encontrasse a casa dele naquela situação, ele arrancaria os poucos fios de cabelo e ia ficar muito bravo...
Rainha Margõ Maluca não achava que era tão complicado assim, mas era tanto pó, que ela mal conseguia enxergar as coisas e espirrava tanto que parou de cantar.
Então ela teve uma ideia que achou incrível: ia colocar todas as coisas lá fora, até a cortina de poeira desaparecer.
Mas o sol estava indo embora, e Jerônimo chegando. E com certeza ele não ia achar muita graça em dormir á luz da lua. Não mesmo...