sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

depois daquele susto



A chuva há muito parou de cair, mesmo que algumas gotinhas ainda se desprendessem  dos galhos das árvores como lágrimas, a chuva de verdade já não existia mais. O que existia agora era um silêncio entre duas pessoas que nunca se viram antes. Um silêncio parecido com a noite que chegava. Uma noite sem estrelas.
Mas a Rainha Margô Maluca que não tinha muita paciência com silêncio e timidez, foi logo se levantando do tombo, ajustando a imensa saia vermelha, a cabeleira cacheada ainda com as gotas de chuva e dando outra de suas risadas animadas. A risada entrou pela casa como um eco, foi entrando pelos corredores, quartos, cozinha e na sala onde agora estava ela e Jerônimo, parado e com a boca aberta feito uma estátua assustada e feia.
Há muito tempo aquela casa não sabia o que era o som de uma risada, de alegria e  novidade chegando pelas janelas escancaradas. Desde que a vida foi embora junto com a falecida senhora da casa, tudo ali era silêncio dentro de uma noite infinita. Jerônimo guardou as palavras , inventou manias estranhas, fechou as janelas e portas e esqueceu o que era alegria. Ficou chato, ranzinza e cinza.

_Aaaaaaaaaaaaaaaiiiiiiiiiiii!!! Meu pé ! Você é maluca??? Por que pisou no meu pé sua maluca?
_ Ah...então você é de verdade? Pensei que você fosse uma estátua! Ficou aí parado com a boca aberta e nem para me oferecer um chá! Isto não se faz com uma visita sabia?
_ E desde quando a senhora é minha visita? A senhora caiu no meio da sala, feito um cometa!
_ Adoro cometas! acho que sou assim mesmo: um cometa brilhante e lindo. Então, cadê o chá?

Não tinha chá, nem café, nem bolachas para servir visitas que caem feito cometas no meio da sala. Havia apenas a vontade de Jerônimo que a Rainha Margô Maluca desaparecesse.

Mas isso ela não queria fazer. Ainda...


(ilustração : Ester García http://www.estarsequieta.com/index.php)








sábado, 12 de outubro de 2013

o primeiro encontro




Lá dentro  da escuridão Jerônimo ouvia a chuva caindo, tentava adivinhar quantas gotas existia na chuva. A casa tão dentro da escuridão, ele tão sozinho. Rainha Margô Maluca com os pés molhados e nenhuma dúvida em pedir ajuda, estava morrendo de frio e seus cabelos estavam lisos de tanta água. Bateu com os nós dos dedos na porta , deu três batidinhas,encolheu o corpo, tremia. O vento balançava a árvore, esparramava as folhas. Jerônimo ouviu, aproximou-se da porta, tentou enxergar pelas frestas, se assustou, nunca viu figura mais exótica. Parecia uma ave rara. Rainha Margô Maluca espirrou. Jerônimo deu um pulo para trás. Não deixaria aquela criatura estranha entrar na sua casa...ah não! Ficaria quieto e logo ela desistiria, iria embora. Voltou para a sua cadeira  de balança, em breve seu sossego e solidão voltariam e ele tentaria resolver o mistério das gotas de chuva, quantas seriam?
Então de repente viu um galho entrando pela janela, ela toda se rangendo, e não com muito esforço as frestas foram se abrindo, gotas de chuva entravam sem cerimônia, assim como o vento e as folhas e não estavam sozinhos: uma ave raríssima acabara de despencar no chão da sala. Rainha Margô Maluca, apesar do tombo, dava altas risadas, afinal conseguiu um esconderijo da chuva interminável. Espirrou de novo. Uma,duas,três vezes. Estava ensopada. E foi então que reparou na presença de Jerônimo. Ele paralisado de susto. Ela com a risada entalada na garganta.


ilustração : Ester García http://3ster.blogspot.com.br/

segunda-feira, 29 de julho de 2013

Jerônimo




Há muito tempo que o silêncio vivia naquele castelo. Ás vezes, nas frestas das portas e nos cantos das janelas , entrava uns rabiscos de sol , que ficavam desenhados no chão empoeirado daquele castelo solitário. Não havia passos de dança, nem música para mexer o corpo, não tinha barulho de coisas caindo, nem de água borbulhando na chaleira. O vento não fazia brincadeiras nas cortinas rasgadas, porque as janelas viviam fechadas, os parafusos enferrujaram. A porta não se abria, porque nunca mais recebeu uma visita.Os passos que andavam lá dentro, se arrastavam em chinelas de pano. Só o ruído da cadeira de balanço se fazia ouvir naquele deserto escuro que era aquele castelo. Nhém,nhém,nhémmm. Barulho baixinho que fazia o senhor de barbas longas e corpo magro dormir dias inteiros e ficar a contar as estrelas a noite. Contava as gotas de chuva que caía no telhado, fechava os olhos e contava: uma, duas, três...três mil e uma gotas, três mil e duas... assim, como se fosse possível contá-las e passava o tempo a imaginar a chuva, porque não queria abrir as janelas de parafusos enferrujados.
A primeira a ir embora foi a esposa  . Depois, os empregados, os bichos, as vozes e até o barulho. Ficou sozinho com sua rabugice, grosseria, egoismo e a falta de vontade de ser agradável. Ficou sozinho com a mania de contar as coisas incontáveis.
E debaixo das gotas infinitas de chuva,com a cabeleira molhada e desmanchada , os sapatos vermelhos transformados em lagos, chegava a Rainha Margô Maluca, com sua incontida alegria, seus gestos largos, sua risada barulhenta - ingredientes perfeitos para estragar qualquer mundo chato.
O mundo do velho Jerônimo estava prestes a se transformar.


( ilustração Kestutis Kasparavicius )

segunda-feira, 20 de maio de 2013

azul




Eu imagino que todas as coisas no mundo deveriam ser pintadas de azul. Além do céu e do mar, que eu imagino azul profundo, as estrelas, as flores, a terra, o pó , meu cachorro Banzé , meu cabelo sarará, a boca desdentada do papai e o silêncio da mamãe : tudo lindamente azul. De todas as profundezas e clarezas. O mundo ficaria todo azul e lindo. Porque azul é a cor  das lágrimas do rei Sol. E no dia em que ele chorar suas lágrimas cairão na terra , no pó , nas flores e nas árvores peladas. E cada lágrima vai pintar a terra de azul! O Banzé vai ficar todinho azul e vai  latir feito bobo para a vaquinha Mococa que também ficará azul. E o rei Sol vai chorar por dias e noites, derramando suas lágrimas no seu reino. Eu vou brincar com as lágrimas que formarão pequenas lagoas , as folhas e as flores vão olhar o céu e cada vez mais as lágrimas cairão molhando a pele da gente, todo mundo tomando banho debaixo do céu azul. A noite chegará com suas estrelas azuis e vamos continuar dançando, porque será uma grande festa. Mas  será um mistério porque o rei Sol vai chorar tanto, porque todos estarão muito ocupados brincando debaixo de suas lágrimas. Mas se  ele desse uma olhadinha aqui embaixo veria como é divertido ser feliz e até ia querer ser azul! Ficaria Lindo!



    
( ilustração Jimmy Liao )

quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

Beto e Anita




Beto sente o aroma doce, muito doce que o vento traz. Fecha os olhos e imagina. Os cabelos de Anita são tão leves que dançam sozinhos. Anita dança feito bailarina . Uma bailarina que dança com o vento de aroma doce. Beto ainda está de olhos fechados  imaginando Anita dançando com o vento. As folhas estão caídas no chão, o vento parou de brincar e os olhos de Beto ainda estão fechados. A mão de Anita toca de leve a mão de Beto. A flor vermelha está adormecida. Anita sorri toda tímida quando os olhos de Beto se abrem. Beto não sabe onde colocou as palavras que escreveu, talvez o vento tenha levado longe, ficou apenas a flor adormecida. Anita parece ainda mais bonita que uma bailarina, ainda mais bonita que nos seus sonhos. Anita é de verdade e pergunta baixinho como Beto está e se aquela flor bonita é para ela. Beto sorri e seu coração fica enorme dentro do peito tão pequeno. A flor tão linda acorda nas mãos delicadas de Anita. Seu beijo pousa leve no rosto de Beto. O vento volta a brincar com as folhas. Os cabelos soltos de Anita dançam. Beto nunca vai esquecer quando sentiu o aroma doce de Anita tão perto.




( ilustração Rebecca Dautremer )